3 de abr. de 2008

Religião não praticante (III)

Discutimos anteriormente uma condição essencial de pertencimento a uma religião e vimos, através de exemplos, que os católicos brasileiros não parecem seguir muito o código religioso do catolicismo. Hoje vamos tentar começar a entender o por quê desse abismo entre teoria e prática religiosa, de maneira muito resumida. Para isso, precisaremos voltar um pouco no tempo...

Em primeiro lugar, não sou tão ingênuo a ponto de acreditar que, por exemplo, na Idade Média as pessoas seguiam à risca TODOS os preceitos católicos. O caso é que as sociedades pré-Reforma (e algumas do período posterior também) eram muito mais regradas por preceitos religiosos do que somos hoje. Graças a uma combinação de fatores que envolve a Reforma e a ascensão do capitalismo, entre outros, a religião foi aos poucos deixando de regular todas as instâncias da vida social e tornando-se um elemento facultativo na vida das pessoas. O problema é que esse fenômeno de desassociação religiosa na sociedade se deu muito mais rapidamente do que outro fenômeno que deveria acompanhá-lo: o do desapego a uma religião ou, em outros termos, a desobrigatoriedade social de se ter uma religião X ou Y.

Explico: o tempo foi passando, os Estados-Nação foram tornando-se cada vez mais laicos – por uma série de motivos –, e com isso a influência da religião nas Leis e nos códigos sociais, muito grande antes, foi ficando mais fraca. Por outro lado, as pessoas começaram a se desinteressar pela religião institucionalizada na esfera íntima da vida social numa velocidade muito, mas muito menor. O resultado dessa equação torta é a situação que temos hoje: pessoas que acreditam em um Ser criador (visto que a necessidade de crer em algo além do nosso conhecimento não está nem um pouco próxima de sequer diminuir) que de certa forma se obrigam a uma filiação em alguma religião institucionalizada. Essa religião, por sua vez, tem o seu particular código religioso. O conflito entre o que cada um pensa (o seu “código moral”) e o que aquela religião manda (o código religioso) aparece então, e a pessoa prefere continuar considerando-se religiosa e não seguir todo o código religioso a simplesmente negar aquela religião (ou todas as religiões).

A época moderna e a sua sucessora (a pós-modernidade) também são responsáveis por essa transformação de pensamento em relação às religiões. Com a modernidade nós temos, entre outras coisas, a Reforma Protestante, a primeira bem-sucedida tentativa de duvidar de preceitos católicos depois de muito tempo. Isso serviu como um exemplo de que as pessoas “comuns” podiam interpretar as normas da Igreja do seu jeito, e foi o que de fato aconteceu, ao longo dos séculos que se seguiram.

Já à pós-modernidade pode ser atribuído algum crédito nesse processo graças à relativização, que alcançou todos os níveis possíveis, da Física a Religião. No mundo de hoje, tudo é relativo. Par o relativismo, o que eu penso é o certo e ponto final, visto que o mundo é o que eu vejo (bobagens de uma pseudo-física quântica, mas vá lá). Nesse sentido, seguir normas pré-estabelecidas há séculos ou milênios é um contra-senso; sou eu quem deve fazer meu caminho. Percebam que não estou afirmando que isso é certo ou errado; apenas estou mostrando que pensar assim E seguir uma religião é uma contradição em termos.

No Brasil, isso tudo se dá particularmente com o catolicismo, dada a nossa herança portuguesa. Por isso temos aqui cerca de três quartos de supostos católicos no país. Em um movimento “Maria-vai-com-as-outras” vicioso, as pessoas se obrigam e obrigam as outras a escolher uma religião (normalmente a católica, mas é bom lembrar que outras também são bem citadas, como a espírita, por exemplo). Essas mesmas pessoas, que se consideram tão “esclarecidas” (e aqui esse termo não poderia ser melhor, porque ele faz referência exatamente ao Iluminismo), são as mesmas que criticam ou tiram sarro das pessoas “crentes”. Ora, como vimos antes, teoricamente TODOS os religiosos são crentes, visto que têm que acreditar no que os mentores daquela igreja (bispos, pastores, padres, ministros) falam. De novo, percebam que eu não estou dizendo que não seja um absurdo seguir normas religiosas; estou tentando mostrar a contradição da maioria das pessoas que dizer ter uma religião e criticam aquelas que são carolas. Um ótimo exemplo a dar é o dízimo: fazendo parte de quase todas as religiões (mesmo aquelas que não o institucionalizaram costumam pedir “contribuições para ajudar o trabalho”), ele é normalmente associado no Brasil apenas às religiões evangélicas (Igreja Universal, Show da Fé, etc.). A maioria dos católicos acha um absurdo dar dinheiro àquele pastor da televisão que só fala "bobagens", mas esquece que o dízimo está estipulado também na Igreja Católica, e que no Brasil ele voltou a ser implantado pela CNBB na Igreja Católica após 1969. Como diz o ditado, pimenta nos olhos dos outros...

Dessa forma, estamos escolhendo nós mesmos, entre um código religioso, regras que nos convenham. Ora, fazer isso e ainda dizer que pertence a determinada religião é um absurdo, justamente pela questão da fé; em nenhuma religião está escrito que as regras (normalmente divinas) são facultativas e que devem ser julgadas por cada um, bem pelo contrário. Em todas temos punições severas para quem não as cumpre durante sua vida (Inferno para os católicos, punições em uma próxima vida para os espíritas, etc.). Se tu quer escolher no que acreditar, beleza. Crie seu próprio código e viva de acordo com ele, mas não diga que é religioso, porque ser religioso não é acreditar em um Deus, mas seguir uma religião.

Percebam que não estou entrando no mérito de que parte desse código religioso (ou todo ele) foi feito por pessoas, que escolheram seus critérios arbitrariamente, baseados por escolhas pessoais ou políticas. Afinal, se você é religioso e acredita realmente que esse código religioso não é divino, mas mundano, está entrando em uma contradição em termos. Argumentar que os padres são mundanos, que uma parte deles é pedófila, que o Papa é nazista, etc., não serve para se abster de cumprir as ordens divinas; afinal, os erros dos “funcionários” da Igreja não justificam os seus, visto que o código religioso deve ser atendido por todos – afinal, o castigo (Inferno) e a redenção (Céu) são para todos.

Não sou católico, muito menos religioso. Quando falo aqui de pecado, de Céu, etc., estou utilizando termos próprios da Igreja Católica, que fazem parte de um conjunto de normas que devem ser respeitadas por quem se diz dessa religião. Não estou defendendo que todos devam seguir os preceitos do catolicismo, mas o contrário; defendo que as pessoas parem de tomar uma postura hipócrita ao dizerem que são de determinada religião, mas não conseguem seguir nem os seus preceitos básicos, quanto mais TODOS eles – o que seria o ideal para um religioso de verdade. Se você duvida de algo na sua religião, logo você deixa de fazer parte dela. Afinal, a fé é o motor primordial de toda a crença religiosa, querendo ou não. Ao duvidarmos de algo que é baseado em fé, nos distanciamos daquela religião (seja nos atos ou nos pensamentos) e nos aproximamos de um ceticismo hipócrita, que tenta se esconder atrás de uma pseudosubjetividade travestida de crítica, típica da era pós-moderna.

Com isso, encerro mais uma parte dessa série. Não tenho muito mais a escrever sobre isso (acho), mas pelo menos de mais uma coisa eu quero tratar, e será no próximo “capítulo”: a questão da camisinha e da AIDS na concepção (trocadilho involuntário) da Igreja Católica.

3 comentários:

Thiago F.B disse...

Cara...eu gosto muito da maneira como vc aborda esse assunto!!!!
Pensei numa piada pra fazer um contra-ponto mas não to inspirado...
hehehehehe

abraço irmão júnior!!!
faloooooow.

Anônimo disse...

Os três posts estão muito bons (tava esperando "terminar" para comentar).
Quando digo que não sou católico, minha mãe fica meio chocada. "Mas tu foi batizado, filho!" - sim, fui, mas hoje isso não significa nada para mim, já que não tenho fé, sou agnóstico.
Esses dias, conversando com o meu pai (também agnóstico), falei sobre esse assunto ("católico não praticante") e ele me disse bem isso que tu escreveste: boa parte dos que se dizem católicos afirmam o serem para estar em sintonia com a "maioria da população do país", mesmo que não cumpram os preceitos da religião. Pois não seguem o que diz a Igreja, talvez até tenham dúvidas quanto à existência de um ser superior, mas não têm coragem de assumir isso perante as outras pessoas que (supostamente) crêem em Deus.

Abraços

André disse...

Escolha um carreira. Escolha um emprego. Escolha uma religião. Escolha um rótulo.

Creative Commons License

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.