Esquerda e noção de humanidade
Recebi um e-mail do Rodrigo tempos atrás cujo título era "O que é ser de esquerda?". Tratava-se de excertos de uma reportagem da Caros Amigos em que várias personalidades de diferentes áreas eram entrevistadas, colhendo-se a opinião de cada um sobre o referido tema. Vários depoimentos depois, em vez de uma resposta definitiva, eu tinha uma pergunta específica: "hoje, o que é ser de esquerda?"
A pergunta é datada ("hoje"), porque antes do muro de Berlim cair era mais fácil de saber a resposta: quem era contra os princípios gerais do capitalismo era de esquerda e ponto final. Porém, a partir dos anos 80, assistimos um fenômeno no mundo das idéias que atingiu a todas as esferas do pensamento: uma ramificação das coisas. Isso já era uma tendência há algum tempo, mas foi realmente sentida de uns vinte e cinco anos pra cá.
Explico: antes do fim da URSS, parecia que todos os "de esquerda" lutavam pelo mesmo objetivo: la revolución - mesmo que não soubessem direito o que isso significasse. Mas, pelo menos, todos iam mais ou menos na mesma direção: homens, mulheres, negros, brancos... Com a "ramificação", cada grupo se isolou em nichos próprios, que normalmente têm lutas e conquistas particulares, sem articulação nenhuma com outros grupos. Temos hoje a luta das mulheres, a dos negros, a dos sem-terra, a dos atingidos por barragens, a dos com calos no dedinho do pé esquerdo, enfim, lutas particulares que têm interesses particulares e que parecem mais preocupados com seus devidos umbigos do que com uma noção de bem comum; parece que cada nicho tem suas próprias demandas, e que cada um lute por si.
Isso se deve, em grande parte, a uma mudança no próprio conceito de humanidade; principalmente a partir da Revolução Francesa, os seres humanos passam a ser vistos como seres que compartilham as mesmas características um do outro, ou seja, como seres a priori iguais. Essa idéia ia de encontro à noção de castas que perdurava até então, quando alguém que nascia camponês morria camponês e alguém que nascia nobre morria nobre - ou seja, os homens seriam naturalmente diferentes. Centenas de anos depois, graças principalmente a discrepâncias claras entre a teoria e a prática dos ideais igualitários (escravidão, submissão das mulheres, preconceitos contra homossexuais, etc.), iniciaram-se lutas particulares que se sobrepuseram a qualquer luta mais geral. Chegamos então aos dias de hoje, em que parece que alguém é primeiro "mulher" ou "branco" e depois é "humano", num claro embate com o pensamento iluminista.
Resumidamente, pode-se dizer que a esquerda encontra-se dividida hoje em dia, tão dividida que o seu próprio conceito tornou-se nebuloso; quem luta contra o sistema seria de esquerda, mas se eu luto a favor das cotas para me tornar um empresário, o que eu sou? Se, por outro lado, sou contra os direitos iguais entre homens e mulheres, mas acredito no socialismo (leiam os socialistas do século XIX e percebam que isso não é tão estranho assim), sou de esquerda? A questão que se coloca é que, principalmente após os anos 80, parece anacrônico falar em esquerda. Afinal, se estar contra o status quo é ser esquerdista, em certo sentido os governos brasileiro, boliviano e venezuelo são o quê?
Enfim, estamos em um tempo em que tudo parece misturado e em que as coisas se sobrepõem de maneira conveniente para quem já está estabelecido no poder. Infelizmente, esse parece ser um desafio com o qual a esquerda - seja lá ela quem for - não está preparada para enfrentar.
A pergunta é datada ("hoje"), porque antes do muro de Berlim cair era mais fácil de saber a resposta: quem era contra os princípios gerais do capitalismo era de esquerda e ponto final. Porém, a partir dos anos 80, assistimos um fenômeno no mundo das idéias que atingiu a todas as esferas do pensamento: uma ramificação das coisas. Isso já era uma tendência há algum tempo, mas foi realmente sentida de uns vinte e cinco anos pra cá.
Explico: antes do fim da URSS, parecia que todos os "de esquerda" lutavam pelo mesmo objetivo: la revolución - mesmo que não soubessem direito o que isso significasse. Mas, pelo menos, todos iam mais ou menos na mesma direção: homens, mulheres, negros, brancos... Com a "ramificação", cada grupo se isolou em nichos próprios, que normalmente têm lutas e conquistas particulares, sem articulação nenhuma com outros grupos. Temos hoje a luta das mulheres, a dos negros, a dos sem-terra, a dos atingidos por barragens, a dos com calos no dedinho do pé esquerdo, enfim, lutas particulares que têm interesses particulares e que parecem mais preocupados com seus devidos umbigos do que com uma noção de bem comum; parece que cada nicho tem suas próprias demandas, e que cada um lute por si.
Isso se deve, em grande parte, a uma mudança no próprio conceito de humanidade; principalmente a partir da Revolução Francesa, os seres humanos passam a ser vistos como seres que compartilham as mesmas características um do outro, ou seja, como seres a priori iguais. Essa idéia ia de encontro à noção de castas que perdurava até então, quando alguém que nascia camponês morria camponês e alguém que nascia nobre morria nobre - ou seja, os homens seriam naturalmente diferentes. Centenas de anos depois, graças principalmente a discrepâncias claras entre a teoria e a prática dos ideais igualitários (escravidão, submissão das mulheres, preconceitos contra homossexuais, etc.), iniciaram-se lutas particulares que se sobrepuseram a qualquer luta mais geral. Chegamos então aos dias de hoje, em que parece que alguém é primeiro "mulher" ou "branco" e depois é "humano", num claro embate com o pensamento iluminista.
Resumidamente, pode-se dizer que a esquerda encontra-se dividida hoje em dia, tão dividida que o seu próprio conceito tornou-se nebuloso; quem luta contra o sistema seria de esquerda, mas se eu luto a favor das cotas para me tornar um empresário, o que eu sou? Se, por outro lado, sou contra os direitos iguais entre homens e mulheres, mas acredito no socialismo (leiam os socialistas do século XIX e percebam que isso não é tão estranho assim), sou de esquerda? A questão que se coloca é que, principalmente após os anos 80, parece anacrônico falar em esquerda. Afinal, se estar contra o status quo é ser esquerdista, em certo sentido os governos brasileiro, boliviano e venezuelo são o quê?
Enfim, estamos em um tempo em que tudo parece misturado e em que as coisas se sobrepõem de maneira conveniente para quem já está estabelecido no poder. Infelizmente, esse parece ser um desafio com o qual a esquerda - seja lá ela quem for - não está preparada para enfrentar.
4 comentários:
Meu pai (que é de esquerda) me disse: "a esquerda só se une na prisão". Infelizmente, é a mais pura verdade. Não existe esquerda, e sim, "esquerdas", que lutam entre si, enquanto a direita é unida. As esquerdas valorizam as lutas particulares, específicas, que as dividem, em detrimento das causas comuns que as poderiam unir.
Olhando retrospectivamente me parece que a esquerda sempre foi dividida, e sempre teve lutas internas, mas a idéia que que havia um propósito comum de existência que unia a todos ("la revolucion"), dava um sentido de unidade, de movimento coeso, e de ideário comum, que hoje, efetivamente se perdeu. O fortalecimento do capitalismo e, por conseqüência, do individualismo, fez morrer as idéias iluministas de humanidade e universalidade sobre as quais se alicerçaram o pensamento marxista e suas vertentes. E hoje é cada um por si e Deus não está nem aí para todos. A queda do muro esfacelou não só o cimento que uniam suas pedras, mas também a identidade que unia os movimentos "de esquerda".
E o pior de tudo é que hoje o discurso de "la revolución" quase sempre soa como um discurso adolescente-pseudo-rebelde, não mais como algo a ser conquistado, mas só como um conjunto de idéias e palavras que não passam à ação.
"em que parece que alguém é primeiro "mulher" ou "branco" e depois é "humano"
Frase perfeita.
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