31 de jan. de 2007

Mel Gibson, violência e autenticidade

Muita gente está aconselhando o senhor Mel Gibson a procurar ajuda psiquiátrica devido a sua suposta predileção pela violência demonstrada pelos filmes por ele dirigidos (Coração Valente, A Paixão de Cristo e, agora, Apocalypto). Eu humildemente discordo. A violência extremamente gráfica nos seus filmes é apenas um ponto em comum de algo maior: sua preocupação com a autenticidade de suas obras. Sabemos que o cinema não é nem nunca poderá ser um retrato fiel da realidade; um filme pode ser, no máximo, a realidade daquele realizador. Porém, existem elementos que tornam um filme mais "real" do que outro, e são exatamente esses elementos que parecem ser o alvo da preocupação de Gibson. A violência é gráfica, na cara do espectador, para dar mais veracidade às cenas, assim como a escolha pela língua falada na época - aramaico, hebraico e latim para A Paixão e iucateque para Apocalypto. E é exatamente esse tom de verossimilhança o maior mérito e o maior defeito de seu novo filme.

Contando a história quase homérica de Jaguar Paw (porque não traduziram seu nome, por Deus?), passada no início do século XVI, Apocalypto é um filme que fala na verdade sobre o ciclo interminável de conquistas entre povos. Afinal, ele começa com uma parte da tribo de J.P. (Jaguar Paw, tá?) caçando uma pobre anta na floresta. Pouco tempo depois, sua tribo é submetida rapidamente pelos Maias e vários moradores são levados como escravos de guerra para serem depois ritualmente sacrificados. No meio do ritual, um sacerdote Maia inicia um discurso que poderia ter facilmente saído da boca do atual Dono do Mundo, o sr. Bush. Nele, o Maia fala que eles são o povo escolhido por Deus para comandar o mundo, etc. e tal. Pouco depois, seriam esmagados pelos espanhóis. Ou seja, a arrogância humana em querer tornar-se o senhor do mundo nunca foi exclusividade contemporânea, e mais do que isso, só existe dentro das circunstâncias de cada época e civilização. A pergunta que fica é: quem será que vai destronar os norte-americanos?

Tecnicamente o filme é muito bom. Ponto positivo para a fotografia (os planos naturalistas são fantásticos), montagem, maquiagem (as tatuagens, os cabelos, etc.), direção de arte (as construções maias são incríveis) e as atuações (que contam com a maioria do elenco amador). Ponto negativo para a utilização de câmera digital e o excessivo uso de câmera lenta e subjetiva. Não sou contra a câmera digital; existem filmes em que ela funciona bem - e Michael Mann sabe usá-la como poucos, como em Colateral, por exemplo -, mas nesse filme ela definitivamente não é a melhor escolha. Quanto à câmera lenta e à subjetiva, porra, o Mel Gibson exagerou! Ele as emprega em momentos completamente inapropriados, chegando a mostrar o ponto de vista de uma... cabeça decepada!

A própria violência do filme, tão alardeada por muitos, não incomoda. Ela se apresenta totalmente integrada ao filme; aquela serve a esse. É muito diferente, por exemplo, do por si só sanguinário O Albergue. Se a violência do filme é muito gráfica e se o diretor não faz nenhuma concessão para aliviar determinadas cenas, isso deve-se à pretendida autenticidade referida mais acima.

Enfim... Chegamos à principal rateada do filme, que diz respeito justamente à verossimilhança que parece ser o objetivo de Gibson: Apocalypto exibe um sem número de deus ex machina (ou seja, pessoa ou coisa que de repente aparece e resolve uma dificuldade aparentemente insolúvel), a partir do segundo ato, que chega a irritar. É o seguinte: J. P. precisa fugir dos Maias, voltar para a sua ex-aldeia e salvar sua esposa grávida e seu filho pequeno de dentro de um buraco, em uma aventura que rivaliza com a da Odisséia. Até aí, tudo bem. O problema é que, desde que chega na cidade Maia, J. P. passa por um sem-número de situações em que sua morte seria certa em um mundo minimamente normal. Porém sempre tem um porém para salvá-lo no último momento. Sempre. E isso incomoda muito, já que a preocupação com a reconstituição do filme não basta como contraponto de autenticidade a essas "intervenções divinas".

Bem, com tudo isso colocado na balança, posso dizer que Apocalypto não é um filme ruim. Entre seus méritos, coloca Mel Gibson como um diretor consagrado tecnicamente, e ainda faz filmes como Gladiador tornarem-se menos sérios, com seus diálogos em inglês. Afinal, Gibson provou que dá para fazer filmes de época com a língua da época. Entretanto, o filme poderia ter sido feito de maneira diferente, e isso acaba compromentendo um pouco o projeto.

FICHA TÉCNICA:
Apocalypto (2006) - Nota: C
Direção: Mel Gibson. Com: Rudy Youngblood, Raoul Trujillo, Rodolfo Palácios, Dalia Hernandez, Carlos Emilio Baez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Amilcar Ramirez, Israel Contreras, Isabel Diaz.

3 comentários:

André disse...

Ainda não vi Apocalypto nem Paixão de Cristo, mas em Coração Valente Mel Gibson provou ser um ótimo diretor - e, naquele caso, também era a violência uma 'aliada' do filme, e não chegava a destoar. E achei muito boa idéia dele usar as línguas originais.

Michael Mann tira imagens incríveis da câmera digital, FATO.

Rodrigo disse...

Não vi Apocalypto, mas pretendo assistir. Acho ótima a idéia do Mel Gibson utilizar as línguas originais nos filmes dele, confere maior veracidade, mesmo que saibamos que cinema não é um retrato fiel da realidade (até é, mas da realidade do diretor).

Kleiton disse...

Não conheço nada do Michael Mann, a não ser Colateral, que é ótimo.

Mas o David Lynch já falou o que ele acha sobre a película. Concordo.

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