10 de jan. de 2007

Mentalidade de época

Estou agora dando uma espiada em jornais antigos, coisa de trabalho. Ao passar os olhos por edições do Correio do Povo e da Zero Hora de 1967, ambas de Porto Alegre, fui transportado para outra época. Tá, parece tratar-se de obviedade ou sentimentalismo à primeira vista, mas uma olhada mais profunda indica outra coisa. São apenas quarenta anos que separam aquelas edições de jornal dos dias de hoje - o que, em termos geológicos, é uma piscadela bem rápida -, mas quanta coisa mudou! Particularmente, a mentalidade. Era a época da ditadura (ainda sem o AI-5), da moral e dos bons costumes, e o Maio de 68 e a geração paz e amor ainda estavam por vir. Vivia-se ainda a herança comportamental do início do século, e percebe-se que existia uma preocupação nas pessoas em fazer as coisas dentro da ordem estabelecida (estabelecida por quem mesmo?).
Um trecho do jornal Zero Hora de 11/10/67 ilustra bem essa mentalidade. Trata-se do "Correio do Coração", seção do jornal que respondia dúvidas sentimentais de leitores, todos os dias. As perguntas eram respondidas por uma tal de Tânia e o sentimental deveria usar um pseudônimo para questioná-la. Então o "Amoroso de Bagé" mandou uma dúvida que estava atormentando-o, dúvida essa que eu transcrevo literalmente abaixo. É longo, mas a resposta vale a pena:
AMOROSO DE BAGÉ (Bagé) – Para comêço de estória, tenho 30 anos e pertenço a uma corporação. Fui noivo uma vez, mas meu noivado não deu certo, pois não gostava da môça. Vivi alguns anos com outra môça, mas agora não gosto mais dela. Acontece que vim a morar com a viúva de um tio meu. Passei a gostar dela e nós nos tornamos amantes. Não sei se estamos errados ou não. Nossa ligação ainda é segrêdo. Ela é rica e recebe pensão do marido, ao passo que eu sou pobre e não tenho nada de meu. Pretendemos continuar nossas relações em segredo para não chocarmos nossos parentes e para que ela não perca sua pensão. Vivemos como dois amigos perante suas filhas e familiares. Eu vivo bem e me sinto bem, vivendo com ela. Não pago coisa alguma em casa e ela ainda me ajuda no que preciso. Agora estou namorando uma garôta há pouco mais de um mês e sinto que amo essa garôta. Já estou pensando até em noivado. A garôta é direita e de boa família. Entretanto, meu passado não me recomenda, pois tive noiva, amantes... O que devo fazer se um dia minha namorada descobrir tudo? Agora eu me atormento, arrependido de meu passado... Não quero que minha namorada chegue a saber de nada disso...
RESPOSTA – Prefere, então, continuar a iludi-la? Fazendo com que ela pense que você chegou aos 30 anos sem a menor experiência sexual? Ora, meu caro, isso não é nada viável nem prático. Em primeiro lugar, ninguém acredita em tanta pureza por parte de um rapaz – aliás êsse tipo de pureza até desprestigia o elemento masculino aos olhos das mulheres. Em segundo, se você pensa mesmo em se casar com essa môça, deve tratá-la como tal e não como uma bobinha que deve ser mistificada. Assim como você não gostaria de que ela o enganasse sôbre o seu passado, também você lhe deve sinceridade e franqueza.
Êsse é apenas um dos aspectos da questão. Outro é a sua grande instabilidade emocional. Ora gosta de uma, ora gosta de outra... e quem lhe garante que dentro de alguns meses ou alguns anos, sua amada atual não lhe pareça uma “chata”? Além disso, você a conhece há muito pouco tempo, e o casamento, sendo um compromisso sexual , sentimental, social e legal, é um problema muito mais complexo do que você julga, não se tratando de uma mera questão de gostar ou não gostar de alguém. Isso sem esquecer que você não é capaz de sustentar-se nem a si mesmo, e que chegou aos 30 anos sem ter situação definida, sem a menor aptidão para manter uma família em boas condições.
Terceiro ponto importante é sua ligação atúal. Pelo que ela conta do seu caráter. Queira ou não, você não passa de um gigolô de sua tia. E a profissão de gigolô, que sempre indica falta de brio masculino, nesse caso particular é agravado pelo fato de se tratar de pessoa de sua família. Se você não respeita nem a própria tia, quem nos garante que você respeitará sua sogra, sua avó, suas sobrinhas, suas cunhadas, suas filhas?
Você tem 30 anos, meu caro. Não é mais um brotinho em pleno crescimento, com as suas confusões sentimentais e sexuais, procurando orientar-se numa vida adulta ainda desconhecida e maravilhosa. Se você tivesse 16 ou 17 anos, eu acharia que tudo não passava de um restinho de seu complexo de édipo, mas que poderia acabar superado com o tempo. Com 30 anos, porém, você atingiu a plenitude de sua vida adulta. E quem é você? O que é que você pensa da vida? O que é que você deseja da vida? Quais são os seus princípios morais? Como é que você se orienta na vida? Ou você simplesmente vai vivendo? Lembre-se que esse despreocupação, do que essa amoralidade está na base de muitos criminosos, que se deixam levar pelas ocasiões, incapazes de se traçarem uma diretriz na vida e apenas aproveitando as oportunidades que lhes aparecem.
Com 30 anos, você tem obrigação de tomar consciência de sua pessoa, de sua situação na vida, no mundo, na sociedade. De deixar de viver como bicho, só preocupado com o próprio bem-estar. De fazer sua vida, de definir de uma vez por tôdas a sua personalidade, de tomar decisões conscientes.
E francamente, acho que você deve fazer tudo isso antes de pensar em compromisso seja com quem fôr. Atualmente você não tem condições morais, emocionais e psicológicas para isso.
Seja homem. No bom sentido.

6 comentários:

Rodrigo disse...

Não tem como ampliar essa foto? Pois não consigo ler nada além das letras grandes...

Eu mesmo disse...

Transcrevi tudo, Rodrigo!

Anônimo disse...

Nada mais antiquado... Nada mais atual.

Anônimo disse...

Nem sei, não acho que a ZH atual iria deixar alguém responder "Seja homem. No bom sentido". O politicamente correto tá de olho

Anônimo disse...

fica cláro que a resposta veio de acordo com o momento político e com uma visão feminina do caso...não sendo uma resposta mais abrangente...se é q me faço entender. Mas apesar de não concordar com alguns pontos...tenho q admitir q em termos gerais a resposta foi boa!!! Afinal, como vc mesmo disse Jr, as mudanças foram muitas em 40 anos. Hj isso seria motivo de risos aos leitores, porém na época, seria motivo de indignação em alguns setores da sociedade(ao menos os formadores de opinião).
Abraço...gostei desse tópico, diferente, mas muito bom!!!!
Falooooooooow.

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom

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