26 de jun. de 2007

Sobre cotas, de novo... (é longo mas vale)

Atualmente, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) está atravessando um período de debates acalorados a respeito da adoção ou não de cotas raciais para os seus cursos. Para quem não sabe, sou radicalmente contra as cotas, inclusive já escrevi sobre isso. Porém, a urgência da discussão faz com que eu tenha novamente que me manifestar sobre o tema. Para tanto, vou colar aqui um excelente texto de um professor da UFRGS, Bernardo Lewgoy, doutor em Antropologia pela USP, que fala por si. É longo mas, por favor, seja você contra, a favor ou sem opinião formada, não deixe de lê-lo:

Até as pedras sabem que um dos princípios da propaganda ideológica é repetir uma mentira até que esta pareça verdade. Depois de enxugar as minhas lágrimas ao ler tantos argumentos emotivos em e-mails de abnegados campeões da justiça racial, proponho-me aqui a modestamente comentar algumas falácias, proposições destituídas de valor científico, mas carregadas de valor retórico que estão no centro do debate que venho acompanhando em artigos circulando na Internet. Meu único interesse é contribuir para um debate que interessa a toda a comunidade acadêmica e, por extensão, a todos os brasileiros porque altera princípios básicos de nosso direito, instituindo direitos diferenciados de acordo com as raças.

1) Manipulação de dados estatísticos. É a principal falácia, a mais perniciosa. Porque se insiste nos números relativos à raça, cor e renda no Brasil? Porque são os dados que justificam a adoção de ações afirmativas. Se ficar provado que o problema brasileiro é social antes de ser racial, então políticas públicas focadas em raça param de fazer sentido. Se o número de brancos na Universidade for realmente de 97%, fantástico número que ninguém sabe de que fonte surgiu (porque ela não existe!) tudo bem, Mas se não, nosso excêntrico fabricante de dados oficiais para consumo militante vai ser obrigado a se confrontar com os dados oficiais do IBGE, do Pnad e do MEC. E estes mostram o que? Que a desproporção de negros nas universidades públicas em relação à população não é tão dramática quanto apregoam nossos apocalípticos cotistas. Que os negros vêm efetivamente ocupando um maior lugar nas universidades públicas, o que apaga com água o incêndio que se quer apagar com gasolina. Claro, na hora de contar o número de negros no Brasil os pretos são somados aos pardos (48%). Mas na hora de contar quantos eles são dentro da universidade e do serviço público, os pardos não são contados (1%). Velho truque de má fé: manipulação de dados estatísticos! Como não se consegue contestar a desmistificação que Ali Kamel fez deste dado desqualifique-se o Ali Kamel! Remeta-se a um blog onde se contesta uma discussão que Kamel faz da bolsa escola, mas não dos dados sobre racismo! Use-se um argumento de autoridade: que honrados estatísticos ligados ao honrado governo Lula jamais manipulariam dados!! De fato, que absurdo duvidar de gente tão honrada! O que Kamel discute é: se há racismo no Brasil, daí se segue que o não acesso à universidade de pretos e pardos está condicionado pelo racismo? A resposta é não, pq. os dados não provam isso. Acho que o que choca nossos cientistas sociais pró-cotas é que a resposta socioeconômica ao problema das desigualdades sociais é muito tradicional, pouco fashion, pouco complexa e pouco sofisticada e não valoriza a diferença étnica como eles gostariam, não usa referencias bibliográficas da filosofia pós moderna francesa e dos intelectuais pós colonialistas. Às vezes, a realidade é mesmo muito chata...

2) "Há preconceito racial no Brasil, logo as cotas se justificam." Premissa da qual não se segue a conclusão. Somente as terríveis e injustas cotas raciais são a solução para a situação dos pobres de todas as cores, incluindo, repito os 19 milhões de brancos pobres do IBGE? "-Ah, meu caro, esqueça os brancos pobres. Brancos pobres não interessam a ninguém, estão no IBGE mas não dão Ibope!" Vamos então criar uma nova categoria de excluídos, os brancos pobres, uma minoria esquecida, “fora de moda”! Também, quem mandou ser branco? Por que em vez de cotas, as ações afirmativas não poderiam ser políticas de combate ao preconceito racial desestabilizando a noção de raça e afirmando que todos deveriam ser julgados de acordo com nossas ações e méritos? O que sustento é que oficializar a noção de raça para combater o racismo é como combater um incêndio com gasolina. Mas acho que há gente que já se viciou no cheiro de gasolina.

3) "Brancos são contra políticas de ação afirmativa porque são brancos". Tautologia que visa à desqualificação moral do interlocutor . "Claro, aquele ali é judeu, branco e gosta de cachorros, por isso é contra as cotas." Está tudo explicado! Como eu não havia percebido tamanha profundidade de raciocínio? Condena a discussão de saída como se o mundo se dividisse em preto (negro?) e branco. Engraçado que justamente quem fala em diversidade e respeito ao outro logo reduz a diferença de posições ao mais elementar maniqueísmo. Leva à conclusão autoritária de que se negros não concordarem com as propostas cotistas são "traidores". Miranda, do Movimento Negro Socialista, é contra as cotas. O mulato Caetano também. Será que eles têm auto-ódio ? Assim como os negros Condoleza Rice,(ah talvez essa tenha virado branca) que é contra as cotas raciais, assim como os intelectuais negros Thomas Sowell, Kwame Appiah e Paul Gilroy, que criticam a estreiteza da noção de raça? Terão embranquecido? Não,nada disso. É que quando algo se mostra esgotado e desgastado em seu lugar de origem aí é que se torna aprazível no Brasil!

4) A racialização do debate. Você discorda de mim, logo é racista! Um silogismo maniqueísta por excelência, mas cansativo pela monotonia de sua repetição. "Mais racista é quem me diz" - começo a pensar. Há racistas contra as cotas como há anti-racistas contra as cotas. Há também racistas pró-cotas (puxa e fazem um barulho danado!) assim como eu acredito que há pessoas antiracistas, honestas e inteligentes a favor das cotas (embora raramente esses adjetivos se conjuguem na mesma pessoa). Essa estratégia retórica pode ser chamada de má fé ou mau caráter. Não sei se quem discorda de mim é reprimido sexual ou está sofrendo de delirium tremens, não sei qual a proporção de gens caucasianos ou de sangue asiático no sangue de quem discorda de mim. Será que teremos de fazer exame de DNA e passar por um Tribunal Racial para poder participar de um debate de interesse de todos? A única coisa que tenho à disposição são argumentos, teses, dados. Durma-se com um barulho desses

5) A chantagem da vítima. Esta quer fazer crer que quem critica as cotas despreza o sofrimento e o ponto de vista de negros e pobres."-Sou negro e sofro mil vezes mais do que você, logo você nunca vai entender o que eu passo." Pascal Bruckner, em O Pranto do Homem Branco desvendou esse argumento. Chama-se terceiro-mundismo, e é uma expressão laica do Pecado Original cristão, que é o de ser Branco Imperialista Ocidental Etnocêntrico e que deve reparação ao infinito, por toda a eternidade pelo que seus ancestrais fizeram aos outros não-brancos. Leva ao militantismo expiatório, que é dizer que o outro lhe deve reparação, senão ele é também cúmplice do Pecado Original. Quando leio um colega afirmando que "os judeus e os negros têm uma ontologia própria e as experiências não são comparáveis" é tão fantástico que não dá pra dizer nada, fiquei mudo pensando no meu processo de branqueamento não realizado... Acuse muito alguém de te discriminar, de menosprezar a tua identidade cultural, etc. e você criará uma imunidade para si como uma varinha de condão, vc não é mais reprovado nem despedido. Se a dor da vítima calar o debate racional, fundado em argumentos cotejados na esfera pública, então deveríamos deixar apenas as vítimas de crimes reescreverem o Código Penal. É um discurso bacana, pena que pessoas que nunca sofreram discriminação possam também usá-lo para conferir uma falsa força ao seu débil argumento. Ah esse acesso de santimônia racial me dá medo. Será o medo branco contra os anjos anti-racistas? E o mérito, o mérito foi pro saco, é claro. Defensores de cotas não acreditam nem nunca acreditarão que negros e índios possam entrar na Universidade por mérito próprio porque no fundo eles nem acreditam no mérito nem acreditam na capacidade de negros e índios. Quem é racista?

7 comentários:

Thiago F.B disse...

Infelizmente é que os maiores racistas hoje são os negros!!!
E quando o assunto é cotas, os racistas são aqueles que querem diferenciar os concorrentes por cor!!! Quando o JUSTO é ter cotas para pessoas que não estudaram em escolas particulares!!! Porque neste caso estamos visando uma questão SOCIAL e não racial!!!! Temos que dar oportunidade ao ser humano pobre!! e não ao ser humano negro!!!
Mas nesse caso, assim como em tudo no mundo, o JUSTO não serve e não vence...e nós continuamos vendo os absurdos do dia-a-dia de mãos atadas...
abraço...
falooooooooooow.

André disse...

Não tenho mais nada a dizer,o professor da UFRGS falou tudo, mas um post dessa qualidade merecia pelo menos um comentário.

Anônimo disse...

Bah, no mínimo chocante essa declaração. Me fez pensar em muita coisa!
Laura

Anônimo disse...

Discordo do fato de que o justo seria ter cotas para pessoas que não estudaram em escolas particulares. Eu estudei em escola particular no 2º grau (não por escolha minha, diga-se de passagem), e não significa que hoje em dia eu seja mais abastado que outros. A situação financeira das pessoas muda com o passar dos anos.

O justo mesmo seria definir cotas por renda, aí realmente quem precisa estudar em escola pública estudaria. E geralmente as pessoas de pouca renda estudam em escolas públicas.

Quanto a cota por raça... bah, tah loko.

Kleiton disse...

E qual tua posição sobre cotas sociais? (para pobres e/ou egressos de escolas públicas)

Anônimo disse...

Gostei desse texto na medida em que circunscreve o debate sobre o tema na ordem racional (i. é, dar razões), evitando todo sentimentalismo, coitadismo etc, que leva certamente a maniqueísmos. Mas acredito que tem sérias limitações. A primeira e maior (para mim) é a noção de raça utilizada. Para ele "raça" deve ser descartada do dicionário. Discordo. Ele é necessário sim, no sentido utiliazado por Antônio Alfredo Guimarães (Racismo e Anti-Racismo no Brasil, Editora 34), entendendo-se que na América Latina as formações sócio-econômicas estavam relacionadas com a cor, tanto na América espanhola quanto na portuguesa. No Brasil, os negros eram os escravos. Posteriormente foram libertos e não foram alvo de nenhuma política de inserção social. Foram e são jogados sempre para a periferia. Nesse sentido, "raça" abaca três dimensões: existência (na sociedade) da concepção de raças biológicas; atitude moral em tratar de modo diferente membros de diferentes raças; por fim, posição estrutural de desigualdade social entre raças. Por isso é complicado falar em "O que sustento é que oficializar a noção de raça para combater o racismo é como combater um incêndio com gasolina". Bom, pretendo escrever um texto a respeito. abraço

Anônimo disse...

Respondendo o Kleiton: Quem estuda/estudou em escola pública não necessariamente tem uma renda baixa, da mesma forma de quem estuda/estudou em escola particular não necessesariamente tem uma renda alta.

O fator de escolha tem que ser justamente a RENDA das pessoas, e não a escola o qual estuda/estudou.

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