21 de ago. de 2007

Bárbara

Sem pressa alguma, Bárbara atravessava a praça na qual costumava brincar na sua infância. Enquanto isso, pensava em tudo o que lhe acontecera nos últimos tempos. Refletia como considerava a vida injusta, mas que pensando em retrospectiva até que ela havia lhe sido generosa. "Deus escreve certo por linhas tortas", pensava. Já não era mais tão religiosa quanto fora antes, em parte por tudo o que lhe havia acontecido e que lhe havia modificado de uma maneira que já não conseguia mensurar, mas via agora esse ditado com os olhos de quando tinha mais fé. Se pudesse escolher, não gostaria de ter passado por tudo o que passou, de ter sido obrigada a testemunhar as agruras que a vida lhe aprontou, gostaria de ter avistado mais rosas e menos espinhos pela trilha que tinha atrás de si. Porém, tinha consciência de uma coisa - na verdade, tinha certeza disso: tudo o que havia passado a moldara e a transformara no jeito que era hoje. Se agora estava bem, se agora conseguia enxergar paisagens maravilhosas e sentir emoções únicas, era porque tinha provado antes o amargo gosto da desgraça. "Até por contraste", pensou, "hoje eu sei o quão bela é minha vida hoje, porque sei pelo que passei". Então, por que tanto medo? Por que tanto receio de dar um passo à frente, de mergulhar em águas límpidas e calmas e lá se banhar até as pontas dos dedos começarem a murchar?

Num momento em que não queria, conheceu Xavier. Conheceu-o quando estava fugindo; fugia de tudo de ruim que lhe acontecera, fugia de si mesma. Nessa fuga, Bárbara escurecia tudo a seu redor. Não queria conhecer ninguém, não queria nenhuma novidade que lhe trouxesse cor a sua vida. Não queria, mas queria. Queria, mas não acreditava que isso fosse capaz de lhe acontecer. Prendia-se a um passado que não existia, mas que era somente uma versão que seu cérebro convenientemente inventava, e que ela remoía, remoía, sofria, sofria. "E qual passado existe", pensava, "se todo passado nada mais é do que uma reconstrução tosca e seletiva do que a memória selecionou para guardar?" O seu passado era uma seleção da seleção, e ela sabia disso.

Acostumou-se a viver assim, a ponto de não mais se mexer; perdia-se numa insana inércia, sem bater os braços para nadar, deixando a correnteza levar seu corpo e seus sonhos.

Agora, não mais. Xavier chegara e lhe roubara a calmaria caótica que já havia pousado nela. Ele lhe trouxera luz, lhe apontara um caminho. Bárbara o percorria de maneira apaixonada enquanto tentava se desvencilhar do medo que a corroía por dentro, que a atrasava, que a deixava para trás. Hoje, enquanto observava as crianças brincando na praça, felizes por não fazerem idéia do que seja crescer, ela fazia esse balanço da sua vida recente e um sorriso gostoso lhe invadia a face. Estava feliz, feliz consigo mesma, e não sentia isso há um bom tempo. O que ia ser de agora em diante? Não sabia. Apenas sabia que, ao contrário das crianças que brincavam naquela praça em que ela brincara anos antes, não tinha mais todo o tempo do mundo para ser feliz. Se havia trilhado um tortuoso caminho para chegar até ali, o que avistava à frente era tão bonito que a enchia de esperança.

É preciso aproveitar.

5 comentários:

Anônimo disse...

...ao ver as crianças brincarem e concluir que a vida lhe proporcionaria muitas coisas em seu decorrer, Bárbara decidiu que Xavier era um NADA comparado a Murilo, com quem passou a namorar a partir deste mesmo dia.
FIM.

Anônimo disse...

Bonito o conto, chega até parecer meio familiar...
E.M.

Anônimo disse...

Da série "Metendo a colher na história dos outros":

(...)
Hoje, enquanto observava as crianças brincando na praça, felizes por não fazerem idéia do que seja crescer, ela fazia esse balanço da sua vida recente e um sorriso gostoso lhe invadia a face.

Aos poucos, juntou a bolsa do chão e abriu-a. De dentro dela tirou Isabel, sua AK-47 de estimação, que em casa dividia a gaveta com Jorjão, seu vibrador duplo.

"Crianças são anjos", pensou ela. "Mandei muitos anjinhos para o céu".

FIM

Anônimo disse...

Pruma mulher, nada que um bom piç**o não resolva.

Anônimo disse...

Precisamos conversar....
Laura

Creative Commons License

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.