27 de abr. de 2009

Sinédoque, Nova Iorque

Adoro filmes bobos. Adoro me divertir com algo que diz exatamente o que quer dizer. Mas também não resisto a uma obra que possui várias camadas, que a cada revisitada vai se abrindo e se revelando cada vez mais, e cada vez de forma mais complexa e genial. Eu sei o quanto é difícil indicar um tipo de filme assim, do tipo que o espectador tenha que ver de forma bem atenta e, provavelmente, mais de uma vez - afinal, já é difícil fazer alguém assisitir um filme UMA vez... Mesmo assim, sou obrigado a indicar essa obra-prima.

Assisti, no último fim de semana, Sinédoque, Nova Iorque. Uau. Sério, fazia muito tempo que não via algo tão grandioso, tão precioso. Antes de mais nada, quero dizer que sou meio suspeito para falar, pois adoro o Charlie Kaufman, diretor e roteirista do filme, e todos os roteiros que ele escreveu (Natureza Quase Humana, Quero Ser John Malkovich, Adaptação, Confissões de uma Mente Perigosa e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças). Mas nessa sua estréia como diretor ele se superou; fez um filme que talvez daqui a alguns anos torne-se o que 2001 foi para os anos 70 ou o que Magnólia foi para os anos 90 (ou mesmo o que Cidade dos Sonhos foi para a nossa década atual). O que todos esses filmes compartilham, em suas essências, é o fato de serem exercícios intelectuais de qualidade extremamente humanista e de investigação da mente humana. E isso Kaufman faz muito bem.

Eu ia escrever um monte sobre o filme. Ia mostrar o quão denso ele é, mesmo nas partes menos óbvias, o quão bem amarrado ele foi, o quanto ele te atira para fora do cinema pensando em coisas da vida. Ia mostrar como ele perderia a força se tivesse sido dirigido por outra pessoa, pois a direção de Kaufman é importante para o próprio entendimento do filme - assim como seu título -, ia dedicar uma série de frases para exaltar o cara e sua obra. Em vez disso, vou deixar três citações de críticas que, de uma forma ou de outra, sintetizam tudo o que eu ia dizer.

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A estréia de Charlie Kaufman na direção sugeria que ele elevaria a maiores potências seu gosto pelo incomum. O que não poderíamos prever é que ela criaria uma obra-prima instantânea, tão repleta de significados, fúria, solidão, complexidade, dor, perdão, paixão, poesia e tanto amor. Esses termos podem parecer clichê, palavras gastas, mas cada um deve ser entendido na acepção real da palavra. Dissecando a vida e a arte de Caden Cotard, Kaufman fala de si, de todos os artistas, de todos nós, da vida no cinema e fora dele. Fala de uma intrincada e ao mesmo tempo simples rede de relações, medos, frustrações, descaminhos, devoções e sentimentos conflituosos chamada vida.
Fábio Dantas. Crítica completa, aqui.

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E é neste aspecto que Charlie Kaufman mais uma vez comprova seu absurdo talento: embora nossa eterna busca pelo “sentido da vida” tenha originado milhares de obras na Literatura, no Teatro, na Música e no Cinema, o roteirista adota uma estrutura narrativa ímpar e mais do que apropriada à sua função como contador de histórias para investigar a questão: premiado com uma verba inesgotável para criar o espetáculo que desejar, Caden resolve conceber um simulacro de seu mundo em um galpão, contratando dezenas (talvez centenas) de atores que, todos os dias, recebem instruções específicas sobre como deverão interagir com os demais intérpretes. Uma espécie de performance da Vida, a montagem de Caden o transforma, na prática, num Deus de seu próprio universo, permitindo que ele explore a própria psique enquanto busca encontrar, através da experimentação constante, o grande Significado de Tudo (Douglas Adams diria “42”; Kaufman provavelmente responderia “Caos e Desespero”). Com isso, o título do filme se justifica ao transformar Caden e suas angústias num símbolo da Humanidade e a própria Humanidade, em suas contradições e seus esforços de compreender o Universo, num resumo da jornada do próprio Caden. Assim, Sinédoque, New York gradualmente se transforma num exercício narrativo fascinante, construindo uma estrutura complexa que revela novas e surpreendentes camadas sob aquelas que já conhecíamos – e logo Caden constrói um galpão dentro do galpão a fim de representar o simulacro do simulacro (que, claro, ganha seu próprio mini-simulacro). Esta viagem interna se torna tão intrincada que, em certo instante, acompanhamos um enterro que, minutos depois, é representado no espetáculo de Caden apenas para, mais adiante, ser revisto como uma montagem teatral da montagem teatral – e, neste momento, os atores que interpretam outros atores são ladeados por uma tela na qual mais pessoas são projetadas, completando um círculo enlouquecedor de inúmeras representações dramáticas numa ficção da ficção da ficção. (É preciso dizer, aliás, que o design de produção de Mark Friedberg é absolutamente espetacular.) E é neste ponto, diga-se de passagem, que compreendemos a inteligência de Kaufman ao retratar Adele como uma pintora que cria retratos minúsculos que exigem lentes de aumento para serem apreciados, já que, de certa forma, é exatamente isso que Caden faz com sua megalomaníaca produção, jogando luz sobre cada um de nós ao compreender que, por mais que sejamos meros figurantes no que diz respeito à Humanidade, somos, claro, todos protagonistas de nossas próprias vidas.
Pablo Villaça. Crítica completa, aqui.

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[...] não é que você tenha que retornar ao filme para poder entendê-lo. Você tem que retornar ao filme para compreender o quão bom ele realmente é. A superfície pode te intimidar. As profundezas te envolvem. O todo revela-se, e então você pode retornar a ele como um talismã. [...] O assunto de "Sinédoque, Nova Iorque" nada mais é que a vida humana e como ela funciona. Utilizando um diretor de teatro novaiorquino neurótico, ele abarca cada vida e como ela enfrenta as dificuldades e falha. Pense só um pouco e, meu Deus, isso é sobre você. Seja lá quem você for.
[...]
"Sinédoque, Nova Iorque" não é um filme sobre o teatro, apesar de parecer. Um diretor de teatro é um personagem ideal para representar o papel que Kaufman pensa que todos nós desempenhamos. [...] Os atores são as pessoas nos papéis que nós damos a elas a partir do nosso ponto de vista. Algumas delas interpretam papéis designados para fazer o que não têm tempo nem condição de fazer. Elas têm um jeito de atuar que é independente, infringindo as instruções. Elas tentam controlar suas próprias projeções. Enquanto isso, a fonte de toda essa atividade fica velha e cansada, doente e desesperada. Isso é real ou é um sonho? O mundo não é nada além de um palco, e nós somos meros atores dentro dele. Tudo é uma peça. A peça é real.

Roger Ebert, traduzido por mim. Crítica completa, aqui (em inglês).

2 comentários:

André disse...

Eu estou quase cortando gargantas de vontade de ver esse filme. Não estreou aqui em POA ainda, e vou ficar bastante desiludido se aparecer direto em DVD, igual aconteceu com o espetacular O Assassinato de Jesse James.

Eu mesmo disse...

Só digo uma coisa: assiste o filme, de preferência mais de uma vez.

E sobre esses ótimos filmes não saírem no cinena (À Prova de Morte, do Tarantino, e tantos outros filmes, ainda não estrearam no Brasil!!), isso só dá mais munição e estímulo para quem baixa da Internet. E eu te digo, te informa aí pra saber se vai estrear em Poa; em caso negativo, baixa com prazer.

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