10 de mar. de 2009

Ditabranda

Para quem ainda não sabe, a Folha de São Paulo, no seu editorial do dia 17 de fevereiro, ao escrever sobre Hugo Cháves e seus esforços para se manter no poder na Venezuela, escreveu o seguinte:

"Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente."

Ditabranda.

Aí, no dia seguinte, choveram cartas de repúdio a esse termo, e a redação do jornal novamente soltou uma pérola:

"Nota da Redação - Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional."

Mais cartas apareceram para o jornal. A professora Maria Vitória Benevides escreveu para o Painel do Leitor da Folha, no dia 20 de fevereiro:

"Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de 'ditabranda'? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar 'importâncias' e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi 'doce' se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala - que horror!"

O jurista Fábio Konder Comparato também escreveu:

"O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana."

Já a redação do jornal Folha de S. Paulo publicou no mesmo dia a seguinte nota, obviamente reducionista, atendo-se a uma questão que não tem a ver com nada do que foi dito (ditaduras de esquerda, percebam o velho argumento de sempre):

"Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa."

Realmente lamentável a atitude da Folha. Lamentável mesmo. Esse revisionismo recheado de relativismo (duas pragas que contaminam a História nas últimas décadas) é altamente perigoso, e com base em vários comentários que li por aí, infelizmente funciona bem. A ditadura brasileira não foi branda, e compará-la com "outros regimes instalados na região no período" para justificar o uso do termo é de um simplismo preocupante. A propósito: dizer que a ditadura brasileira de 1964 a 1985 não foi branda não quer dizer, necessariamente, defender alguma ditadura de esquerda ou qualquer ditadura que seja. Argumentar nesse nível também é simplista - e conveniente.

Só para lembrar os desavisados, a Folha teria oferecido, durante a ditadura militar, suas viaturas de distribuição para transportar quem combatia a ditadura para os porões da OBAN. Por essa e outras ficou conhecida como "Diário Oficial da OBAN".

Utilizar-se de um termo como o que a Folha escreveu - "Ditabranda" - é tentar dar um novo sentido a um período que não foi brando, é tentar resignificar algo que, por interesses próprios de determinadas pessoas e/ou meios de comunicação, para eles deveria ser visto pelas próximas gerações como algo não tão desagradável como de fato foi. Afinal, utilizar a palavra "branda" é carregar a ditadura brasileira de significados que ela não possui e nunca possuiu. E é aqui que está o equívoco da avaliação da Folha: a comparação, nesse caso, é subjetiva e está servindo a um propósito anterior à própria comparação. Explico: se eu quero provar que a ditadura brasileira foi branda (propósito anterior), então eu a comparo com outras do período que mataram mais pessoas (comparação subjetiva). Ora, quem definiu que existe um critério para comparar ditaduras? E quem definiu qual é esse critério? É como a professora Maria Vitória Benevides escreveu, poderíamos então dizer que a escravidão no Brasil foi "doce" quando comparada com outras, ou que o Holocausto não foi tão ruim assim, comparado com o que aconteceu na URSS, ou que a "ditadura" do Chaves é branda, comparada com a do Pinochet, etc. Uma coisa não justifica nem ameniza a outra.

Nesse sentido, esse termo é uma tentativa sutil de manipulação histórica (tão sutil que muitos não a enxergam - ou convenientemente se negam a enxergar). Não foi uma pessoa isolada na Folha que escreveu isso; o termo aparece num editorial, defendido depois numa nota da Redação. Infelizmente, o jornal é lido por milhões de pessoas, e a maioria realmente acredita piamente em tudo o que um veículo de comunicação respeitável como a Folha escreve. Afinal, se a Folha escreve, deve ser verdade absoluta. Por que a Folha iria mentir, não é mesmo?

5 comentários:

Anônimo disse...

Tem várias pessoas como essas pelo país, esse tipo de gente reacionária e burguesa defendendo os anos da ditadura. Tinha é que fazer eles provarem do próprio veneno - pendurar eles em um pau-de-arara e dar uma tunda de laço ou uns choques elétricos!

Ditabranda... era só o que faltava.

luciano disse...

que sutileza de raciocínio. continue assim

Anônimo disse...

E o pior de tudo, é que a Folha atacou o Comparato e a Benevides por não terem criticado Cuba, mas eles já criticaram. E foi na própria Folha!

Texugo disse...

"dizer que a ditadura brasileira de 1964 a 1985 não foi branda não quer dizer, necessariamente, defender alguma ditadura de esquerda ou qualquer ditadura que seja. Argumentar nesse nível também é simplista - e conveniente."

Olha, creio que você está misturando as coisas. O que penso é que a imensa maioria dessas pessoas que criticaram a Folha pelo termo ditabranda condenam a ditadura que houve aqui no Brasil, e muitos deles de fato lutaram contra ela no passado. Mas essas pessoas nada dizem a respeito de ditaduras de esquerda, como a de Cuba, inclusive tem alguns que enaltecem a Revolução Cubana e Fidel Castro. É muito incoerente, seria como se um grupo de traficantes fizesse passeata pela paz e fim da violência.

Afinal, será que essas pessoas são realmente contra a ditadura como regime? Ou será que estavam lutando apenas para derrubar os militares do governo e instaurar uma nova ditadura, de esquerda? Simplista e conveniente é apontar os erros apenas dos seus "inimigos" e perdoar os camaradas que cometem os mesmos erros porém compartilham de sua visão política e ideológica...

Eu mesmo disse...

Texugo:

Sim, tem gente que criticou a Folha e defendeu ou amenizou ditaduras de esquerda. Porém, não é o caso da postagem, nem da crítica da maioria das pessoas ao termo "Ditabranda". A questão é que não se pode utilizar esse termo para NENHUMA ditadura, seja ela de direita, de esquerda, de cima ou de baixo. Além disso, o trecho que tu citou refere-se justamente ao tipo de crítica que tu fez, ou seja: não se deveria atacar as críticas à Folha com argumentos do tipo "ah, mas fulano não falou nada sobre Cuba". A questão aqui não deveria ser ideológica (como muitos estão fazendo - inclusive tu, e, em primeiro lugar, a Folha). O problema aqui não é Cuba, Venezuela ou Chile: é a tentativa de minimizar algo que aconteceu no BRASIL.

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