3 de jul. de 2007

Língua presa

Línguas são expressões de uma cultura, e é muito interessante analisar certos aspectos seus. Veja essa correspondência lógica entre verbo/particípio e verbo/substantivo de "dar" e "doar":

doar = doado
dar = dado
doar = doação
dar = dação (?)

Daí eu fui no pai dos burros e vi que realmente é "dação", mas que nos dias de hoje o termo está em desuso, sendo utilizado somente no meio jurídico - e olhe lá. O interessante disso tudo é que o verbo "dar" é no mínimo tão usado quanto o verbo "doar", mas o seu substantivo há muito já não é utilizado.

Fico pensando se isso não teria a ver com o fato de que, no Brasil, a doação era um ato supostamente nobre e que pressupunha filantropia, mas que de uns bons tempos pra cá ficou associada necessariamente à auto-promoção ("Fulano fez uma doação de tanto"). A doação é quase sempre pública; serve como que para mostrar à sociedade o quão bom é aquele ser, que tira um pouco do seu para dar aos outros - desde que em troca ele ganhe essa bem-vinda publicidade que lhe é oferecida atualmente.

Já a "dação" é diferente. Vinda do verbo "dar", teria um caráter mais inconseqüente; o dador (sim, essa palavra também existe) me parece aquele que, ao efetivar a dação, não quer nada em troca e nem que ninguém fique sabendo. Não digo que isso não possa ser egoísta, na medida em que ele possa dar algo apenas para satisfazer a si próprio, para apagar algum sentimento de culpa ou simplesmente para ficar bem. Porém, o seu ato se refere apenas a duas pessoas: a ele e a quem ele deu, sem nenhuma preocupação exibicionista externa aos dois.

Nessa geração de Big Brothers e de doações milionárias em cheques gigantes com transmissão ao vivo, não é de se estranhar que "dação" tenha caído em desuso e que o próprio verbo "dar" tenha adquirido feições quase puramente sexuais.

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